Não há possibilidade de transformação digital sem transformação cultural.
Algo óbvio, mas ao mesmo tempo surpreendentemente negligenciado pelas organizações em suas ambições estratégicas. Ambições admiráveis, propósitos inspiradores e análises vigorosas convivem com inação e com negligência em relação a algo inerente a qualquer organismo social: a dinâmica do grupo é o limite do alcance do grupo em qualquer contexto.
Cultura organizacional é um processo sociopolítico-semiótico que envolve:
• Mapa mental coletivo que estabelece as lentes pelas quais são percebidas, analisadas e incorporadas as variáveis do ambiente interno e externo, orientando atitudes individuais e comportamentos grupais, modelando o jeito de ser da empresa e influenciando suas escolhas estratégicas e operacionais.
• Modo grupal de operar e interagir para a realização de um propósito definido no tempo e espaço, reconhecidos pelos indivíduos pelo conjunto definido de normas e valores – não necessariamente explícitos – para a resolução de conflitos, solução de problemas, para o processo decisório, reconhecimento, para as penalidades e para a execução.
• Natureza do vínculo que os indivíduos estabelecem entre si e com o contexto empresarial em que estão inseridos, combinando aspectos afetivos e racionais.
Culturas organizacionais são, portanto, constructos sociais realizados por grupos orquestrados por lideranças capazes de articular interesses comuns, criar significados e implementar obrigações mútuas entre todos os membros, em um processo interativo permanente de dominação, transformação e contestação.
Ao longo do tempo, líderes e liderados modelam linguagens, tradições, normas, valores, significados, símbolos, rituais, mitos, processos, mecanismos de controle e sistemas de reconhecimento. Líderes fazem tudo isso por meio de uma narrativa que se apresente como natural, neutra, crível, justa e legítima, para se tornarem capazes de organizar os processos sociais e psicológicos nesse agrupamento humano.
Forma-se, então, a expressão distintiva de uma empresa em relação a todas as demais. Toda cultura organizacional é inexoravelmente a expressão original de sua trajetória, em contínua dinâmica definida pelas interações sociais internas e externas.
E o que está em jogo na transformação digital?
É justamente a ressignificação destes elementos subjacentes que constituem a cultura de uma organização. Ressignificação também da própria dinâmica de articulação política que permite ao grupo se envolver com um processo de construção social coletiva.
Cultura organizacional é um fenômeno sistêmico. Não há alternativa pontual. Não há possibilidade de atalhos. Não há end-game no curto prazo. É uma jornada de médio a longo prazo, claro, com entregáveis ao longo do caminho.
Três elementos destacam-se neste contexto digital:
• Orgânico: a premissa lógica-planificada-linear do paradigma industrial não funciona bem no contexto efêmero-aberto-complexo do paradigma digital. Recursos abundantes - inclusive capital - tornam-se commodities e o valor passa a estar na orquestração destes recursos em uma entrega colaborativa ecossistêmica que seja distintiva e rapidamente acessível pela comunidade alvo.
• Leve: a premissa de controle e acúmulo de capital como alavanca de valor no longo prazo não se apresenta neste novo contexto. O foco é a leveza em tudo: desde a estrutura organizacional até a arquitetura de software. Modelos operacionais transformados para geração de valor por meio de acesso a serviços ao invés de aquisição de produtos. Relações corporativas comprometidas na cadeia de valor, transformadas em acordos e parcerias situacionais em redes dinâmicas.
• Empatia: o olha centrado na experiência do outro é o olhar válido. E expressões como CX, UX e EX combinam-se nesta ótica de valor centrado em cliente, usuário e colaborador. A lógica empática na construção de jornadas, experiências e vivências conecta soluções, relações e conteúdo a partir de um contexto relevante do outro, destruindo modelos operacionais referenciados em distribuição de produtos.
Transformar digitalmente um negócio implica em redesenhar sua cultura a partir desses três elementos fundamentais na concepção de comportamentos, processos e sistemas. Não é tarefa secundária delegável para a média gerência, mas sim a missão primordial da alta liderança nos Conselhos de Administração e nas Diretorias Executivas.
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Daniel Augusto Motta, PhD, MSc
Fundador e CEO BMI Blue Management Institute